quinta-feira, dezembro 11, 2014

Leitura fora do eixo

Por Caíque Pereira 

Clube do Livro de Campo Grande amplia opções de lazer para leitores da Zona Oeste e Baixada

Lugar de conversas jogadas fora, fast food boca adentro e um burburinho inconfundível de vozes indistintas, as praças de alimentação dos shoppings são cada vez mais o Sol das galáxias comerciais. Ninguém imaginaria que em uma delas nasceria um projeto em que as palavras fazem parte do prato principal.

O Clube do Livro Campo Grande, hoje sediado na Livraria Edital do mesmo bairro no primeiro sábado de cada mês, começou assim. Após uma sessão de cinema em março de 2012, contou com a presença de apenas quatro amigos e muito bom humor. Agora, o encontro mensal tem média de 40 frequentadores, um público-mínimo dez vezes maior que o inicial. Mas a quantidade de participantes não é a única mudança de lá para cá.

| Primeiros capítulos

“Olhando em retrospecto, não tínhamos a menor ideia do que estávamos fazendo. Era mais uma reunião de amigos do que outra coisa”, admitiu Henri Neto, vloggeiro literário que faz parte do Clube desde sua inauguração. “Era no meio da praça de alimentação, não tínhamos foco nenhum e ficamos só conversando.”

Depois de mais uma reunião entre as mesas sucateadas do West Shopping, a maré mudou de verdade na terceira edição do evento. Evellyn Fonseca, blogueira e uma das criadoras do Clube, fez contato com o dono de uma livraria local, que comprou a ideia de abrigar os leitores. O problema é que, logo na primeira vez que marcaram algo na livraria, ninguém apareceu.

Persistência e dedicação proporcionaram ainda mais quatro encontros após o fiasco, quando o vazio se transformou em 18 pessoas – alguns até desconhecidos das organizadoras, acostumadas à presença de parentes e amigos próximos. Evellyn comentou sobre essa transformação:

“Uma das maiores mudanças foi quando conseguimos um espaço na Livraria Edital, um lugar inegavelmente ligado ao mundo dos livros e aos leitores. Acredito que isso trouxe credibilidade ao Clube.”

Da esquerda para direita, Evellyn e Viviane.
(Foto: Facebook)
Ao lado de Viviane Freitas, também idealizadora do grupo, montavam kits de brindes, organizavam lanches e decoravam o cômodo com o tema da história em pauta. Hoje em dia, com as novas responsabilidades e a proporção que o Clube tomou, lidar com tudo isso se tornou uma tarefa nada fácil.

“Participamos anteriormente de outros clubes, mas queríamos que o nosso tivesse uma maneira própria”, explicou Viviane, “O foco não em uma pessoa, mas em um espaço aberto para discussão. Por isso nos sentamos em círculo (ou tentamos) e os participantes que ditam o que será o Clube naquele dia e as conversas sempre viajam por caminhos inesperados e bons. Temos sempre um mediador porque não dá para deixar todos falando ao mesmo tempo, mas a ideia é que seja apenas um orientador da discussão. Acho que esse modelo colaborativo funcionou muito bem aqui na região.”

“O único clube do livro do Rio que conhecia era na Zona Sul, muito longe de onde eu moro”, confessou Erica Martins, integrante desde os primeiros eventos, “Era uma reunião mais pessoal naquela época. Atualmente, o Clube cresceu muito em participantes, o lugar quase não comporta tanta gente.”

O número de visitantes ultrapassa o esperado facilmente quando o debate é sobre sagas best-sellers, por exemplo. Em julho desse ano, Harry Potter fez a sala no segundo andar da Edital suportar mais de 60 pessoas, algumas até fantasiadas de personagens do universo fictício. A fórmula do encontro de amantes dos livros parece, afinal de contas, ter dado certo.

“Participamos anteriormente de outros clubes, mas queríamos que o nosso tivesse uma maneira própria. O foco não em uma pessoa, mas em um espaço aberto para discussão."
A Zona Oeste que lê

Eventos literários no Rio de Janeiro não são novidade. O próprio fenômeno Harry Potter foi pioneiro em alimentar essa prática na cidade, que hoje não passa um final de semana sem ter, pelo menos, um programa literário. Ainda assim, é raro que eles aconteçam fora do eixo Barra da Tijuca-Centro-Zona Sul. É nessa brecha que o Clube do Livro Campo Grande se destacou, ao abraçar os leitores da Zona Oeste, Baixada e arredores.

Foto: Facebook.
“A Zona Oeste sempre foi muito esquecida quando se trata de eventos culturais”, esclareceu Henri (foto à direita). “Por ser uma região mais popular e afastada, vários organizadores acreditam que não teriam público ou interesse por aqui – ainda mais se tratando de livro. O Clube mostra que isto não é verdade. Existe sim pessoas disponíveis e empolgadas a falar sobre livros e, principalmente, os jovens da Zona Oeste também leem. Este é um ponto que acredito que o Clube ajudou a desmistificar. Hoje em dia, além da Edital, outras livrarias da região também começaram a apostar em eventos por aqui – e vejo isto como uma vitória de todos os leitores.”

“É muito gratificante ver que todo trabalho que tivemos desde o início tem dado certo, fico muito feliz quando vejo um rosto novo no Clube e ainda mais quando essa pessoa retorna. São jovens e adolescentes que poderiam estar na praia ou no shopping, mas que optaram por passar suas tardes de sábado numa livraria. Sinto-me orgulhosa de ter ajudado a começar isso aqui em Campo Grande”, disse Viviane ao atribuir o caráter especial do Clube a cada pessoa que se propõe a participar com coração e mente abertos.

"São jovens e adolescentes que poderiam estar na praia ou no shopping, mas que optaram por passar suas tardes de sábado numa livraria."
Ter sua sede na Livraria Edital, localizada na Travessa Ferreira Borges no centro do bairro carioca, foi outro diferencial com que ela e Evellyn puderam contar. A empresa esteve entre as 50 lojas destruídas no incêndio do Luzes Shopping em 2010, próximo ao endereço atual da empresa. A perda de todo seu acervo aliada à falta de seguro apenas serviram de motivação para os donos darem uma segunda chance ao desejo de ter uma livraria no bairro, já carente de espaços culturais. Eles reabriram o negócio poucos meses depois do acontecido, não só para o público consumidor, mas inúmeros leitores com o sonho de ter um lugar próprio para se encontrar.

Próximas páginas

Opinar sobre os prós e contras de uma leitura já faz parte da vida de certos participantes do Clube. Seja através de um site, como é o caso da Erica, ou canal no Youtube, prática do Henri, eles expõem suas opiniões por meio da Internet. Contudo, discutir ao vivo, olho no olho, com pessoas que podem ter posições e argumentos contrários aos seus é uma experiência bem diferente da que estavam habituados.

Foto: Facebook.
“Muitas vezes podemos não ter com quem discutir pessoalmente sobre o livro que lemos e o Clube dá essa oportunidade”, disse Erica (foto à direita), que resenha livros desde 2012 no blog Espiral dos Sonhos, “Nas discussões podemos descobrir também outros aspectos do livro que não percebemos e ler nas entrelinhas. E claro, alguns livros propostos como tema nos fazem sair da zona de conforto, por não serem gêneros que estamos acostumados a ler”.

Henri, além de escrever para seu blog Na Minha Estante, grava vídeo-resenhas com frequência. Mesmo com as duas formas de interação, ele deixa claro qual é sua preferência:

“O computador, querendo ou não, acaba limitando muito a conversa. Frente a frente, podemos seguir várias linhas de raciocínio de uma forma muito mais dinâmica e imediata.”

A tecnologia, entretanto, não deixa de ser uma ajuda quando o objetivo é manter os membros do Clube conectados uns com os outros. O grupo no Facebook é canal direto com as criadoras, que aproveitam o espaço virtual para divulgar quais serão os próximos livros de debate. O WhatsApp é seu mais novo aliado, proporcionando um contato mais imediato entre os participantes dos encontros e compartilhando mais sobre suas rotinas. Se depender deles, o futuro dos eventos é nada menos que promissor.

“Espero que o Clube tenha cada vez mais membros e que mais pessoas aqui da região conheçam o projeto, participem dos encontros, divulguem e interajam também pela Internet”, anunciou Evellyn, que também publica resenhas em seu blog há quase quatro anos, o Hey Evellyn.

“(Para o futuro) Nosso objetivo é incentivar que as pessoas leiam mais, leiam coisas novas, novos estilos e venham conversar conosco sobre o que acharam”, revelou Viviane, aproveitando para espetar a curiosidade dos leitores, “Um dos nossos desejos é investir de alguma forma nos participantes que também são escritores. Pode surgir uma novidade bem legal em 2015”.



0 comentários:

Postar um comentário